O g1 ouviu mulheres que trabalham no mercado financeiro e especialistas em carreira, história, comportamento e realidade socioeconômica para entender o que faz da área um ambiente com tantos relatos de assédio.
A rotina e os desafios das mulheres no mercado financeiro Em agosto de 2021, uma foto despretensiosa da equipe da Ável Investimentos, publicada na rede social do escritório de assessores, viralizou.
No terraço do escritório, no Rio Grande do Sul, cerca de 100 funcionários se reuniram e posaram para uma foto de equipe. Um ponto, no entanto, chamou a atenção: a ausência de diversidade.
Dentre uma centena de assessores, gestores e analistas havia somente 10 mulheres.
A falta de contraste de gênero vinha acompanhada também da falta de equidade racial.
Igualdade, só de faixa etária: todos jovens. Em uma simples imagem, ficaram expostas as entranhas do mercado financeiro.
Há um predomínio absoluto de homens brancos, que dominam de ponta a ponta a operação e a tomada de decisão no setor.
Foto da equipe da Ável Investimentos em 2021, que viralizou pela falta de diversidade Reprodução Anos depois da polêmica — que rendeu até processo e acordos judiciais —, a composição da equipe da Ável mudou, mas não tanto assim.
Procurada pelo g1, a empresa disse que a participação feminina na empresa cresceu impressionantes 650% de 2021 a março de 2024.
Em números absolutos, no entanto, a marca é menos vistosa: eram 10 na época da foto e, no ano passado, 75 mulheres.
Em proporção, a fatia feminina era de 15% de todo o quadro de colaboradores, que conta com 489 funcionários. Patrícia Kaefer, chefe de recrutamento e seleção da Ável, diz que a empresa entende que a representação feminina no setor ainda não reflete um avanço proporcional ao total de profissionais da empresa, mas está comprometida em "desvendar as nuances dessa realidade e em empreender esforços para fomentar o crescimento profissional das colaboradoras". Apesar de ser um exemplo cristalino, a situação da Ável não é uma particularidade da empresa.
É apenas o reflexo de um problema crônico de um setor que deixou crescer (e tem dificuldades sérias para combater) uma cultura predominantemente masculina. No último ano, o g1 mergulhou no problema para entender suas causas, consequências e suas possíveis soluções.
O que se observou do relato de mulheres que fizeram carreira no mercado financeiro é que não são raros os momentos em que é preciso enfrentar casos de assédios sexual e moral, que impactam a autoestima, o comportamento e o desempenho no ambiente de trabalho — fora os salários significativamente menores. Foram ouvidos também especialistas em carreira, comportamento, história e realidade socioeconômica, para entender o que contribui para a perpetuação dessa cultura.
Também, as principais instituições financeiras do país foram convidadas a apresentarem suas propostas de melhorias para a falta de diversidade e planos afirmativos para a carreira de mulheres, mas apenas três delas responderam. Nesta reportagem, você vai entender: Onde estão e o que fazem as mulheres do mercado financeiro? O contexto de relações de poder As vivências de uma mulher da área Os limites impostos pela maternidade O caminho até a liderança O que pode mudar o mercado? O que os grandes bancos estão fazendo Relatos de entrevistadas pelo g1 sobre situações vividas no mercado financeiro g1 Onde estão e o que fazem as mulheres A economista e empresária Francine Mendes, criadora da plataforma Elas Que Lucrem, cansou de ver a desigualdade de gênero dominar o quadro de funcionários das instituições financeiras em que trabalhou.
Ela passou por quatro das mais tradicionais empresas do segmento em 21 anos de mercado financeiro, antes de começar a empreender. "Em minha experiência, sempre houve uma função ocupada 100% por mulheres: recepcionista.
É constrangedor ver a forma como garotas belas são usadas como iscas para agradar e adular os homens de alta renda", comenta. Além do atendimento, não é incomum que mulheres do mercado financeiro estejam em posições de recursos humanos e comunicação.
Mesmo se estiverem nos serviços financeiros, estão em cargos ligados aos primeiros atendimentos ao cliente, como caixas em bancos e gerentes de contas. Se o primeiro diagnóstico é que mulheres estão distantes do processo de decisão, é preciso mostrar essa discrepância em números.
O g1 pediu, então, às principais instituições que fornecem certificações para analistas e gestores do mercado financeiro que levantassem o número de homens e mulheres na área. Entre os assessores de investimentos, que auxiliam os clientes a tomar a melhor decisão na hora de investir, com base em cada perfil e objetivos, as mulheres eram apenas 21% de um total de 28.757 assessores credenciados pela Associação Nacional das Corretoras de Valores (Ancord) até 2024. Já entre os planejadores financeiros, que são aqueles que ajudam o cliente com a organização das contas e a administração dos recursos, a participação feminina era de 36% no ano passado, segundo a Planejar. A única certificação que conta com mais mulheres do que homens é a CPA-10, da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), com 55% de mulheres em um total de 275,5 mil certificados até 2024, com base nos dados mais atualizados. Com essa certificação, o profissional fica habilitado somente a distribuir produtos financeiros.
Na prática, é o profissional que entra em contato com os clientes da instituição em que trabalha, geralmente os de menor renda, para sugerir os produtos financeiros recomendados pelos analistas e especialistas com certificações de níveis superiores. Ainda entre as certificações da Anbima, quanto maior o nível da certificação, menor o número de mulheres certificadas.
Entre os profissionais CEA, por exemplo, que podem oferecer consultoria de investimentos, somente 40% eram mulheres, de um total de 50,75 mil certificados até 2024.
Já entre os profissionais CGA, que podem gerenciar os recursos de outras pessoas, 6% eram as mulheres certificadas, de 6,1 mil. O número fica ainda menor ao olhar para os gestores de fundos de investimento, que são responsáveis por analisar os produtos e definir as estratégias sobre a aplicação dos recursos captados pelo fundo, a fim de obter os melhores resultados possíveis. Um levantamento da Quantum Finance com os fundos ativos brasileiros mostrou que, de 1.052 gestores de fundos em atividade no país até setembro de 2023, somente 50 eram mulheres, o que representa 4,75% do total. Cargos altos ficam com os homens Caroline Gobbi tem até um nome para o fenômeno observado com esses dados.
Formada em administração, ela trabalha no mercado financeiro desde o início da carreira, há mais de 10 anos, e percebeu que as mulheres são, muitas vezes, colocadas para trabalhar na "linha de guerra". "Mulheres estão sempre à frente para receber as reclamações, para resolver os problemas do dia a dia, problema com o cartão, problema de saque.
Enfim, todas essas banalidades quando a gente olha o mercado financeiro como um todo", pontua Caroline. Colocadas em posições de menor importância, é de se esperar que os salários de mulheres no setor sejam menores que os de homens, na média.
Pois o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não só demonstrou isso em números, como mostrou que a discrepância salarial nesse setor é a maior dentre as áreas investigadas por uma pesquisa publicada em junho de 2024. O levantamento foi feito com base no Cadastro Central de Empresas (CEMPRE) de 2022, que reúne dados de empresas e seus empregados, inclusive salários, excluindo apenas os empresários enquadrados como Microempreendedor Individual - MEI. Embora as mulheres fossem a maioria na área de atividades financeiras, de seguro e serviços relacionados — 663.091 profissionais contra 498.611 homens —, elas ganhavam salários, em média, 68,7% menores que eles. Enquanto o salário médio de uma mulher do setor é de R$ 6.205,02, o de homens chega a R$ 10.469,21.
É a maior diferença entre 20 setores. Jefferson Mariano, analista do IBGE e professor de realidade socioeconômica brasileira, explica que a causa dessa disparidade salarial pode ser explicada, sobretudo, pela ocupação desigual de cargos dentro do mercado financeiro. O analista lembra que o último Censo da Educação, do INEP, mostra que as mulheres são maioria nos cursos de graduação que formam profissionais do setor.
Em 2022, para a área de Negócios, Administração e Direito, as mulheres eram 56,6% dos formandos, contra 43,4% homens. "O que pode explicar é realmente a questão de progressão na carreira, a questão hierárquica.
Ou seja, a gente tem poucas mulheres ocupando cargos mais altos nesse segmento", aponta. Mariano conta que um comentário comum entre as mulheres do mercado financeiro entrevistadas para a pesquisa era "a grande dificuldade em crescer na carreira por mérito próprio", devida a uma tendência de os gestores priorizarem homens em seleções para cargos altos.
Outra reclamação das entrevistadas era a forte presença do "coleguismo", que é a promoção de funcionários mais íntimos dos chefes. De acordo com Waleska Jardim, líder de contratação e carreira da BFSH, uma consultoria de recursos humanos para o ecossistema financeiro, muitas mulheres de empresas tradicionais do mercado, como bancos e corretoras, a procuram justamente para migrar de área porque não enxergam possibilidade de crescimento onde estão.
E a situação piora depois que se tornam mães. "O ritmo e o ambiente de trabalho se tornam incompatíveis com a vida delas.
É um setor que demanda uma certa agressividade, sem a oportunidade de crescer ou de ganhar o mesmo que um homem na mesma função", comenta Waleska. Em geral, a opção que essas mulheres encontram é de desenvolver um trabalho semelhante fora do coração do mercado financeiro — como companhias de varejo ou empresas de tecnologia com serviços financeiros (fintechs), por exemplo — que têm uma cultura organizacional diferente.
Volte ao início. O contexto de relações de poder Com tamanha diferença de participação percentual entre homens e mulheres nos espaços de liderança, não é incomum que se forme uma dinâmica de poder masculino. Mariana Bettega Braunert, professora e doutora em sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica que espaços profissionais que são historicamente dominados por homens trazem uma sensação de liberdade para eles. "Em ambientes em que predomina a presença e liderança masculina, as mulheres ficam mais vulneráveis porque assédios são mais comuns e ocorrem sem punição — seja por homens silenciando as denúncias, ou excluindo as mulheres de determinados espaços, até coisas mais graves", pontua Mariana. Outro ponto de incômodo de um ambiente majoritariamente masculino é que as mulheres têm a impressão de que não há a quem recorrer para relatar condutas inapropriadas.
No mercado financeiro, agrava a situação o fato de que o trato com clientes endinheirados é o coração do negócio.
Por vezes, as rodas de negócios são dominadas por homens, o que traz um elemento a mais de pressão para situações delicadas. Veja mais detalhes nos relatos abaixo. Volte ao início. As vivências de mulheres da área Mulheres no Mercado Financ...